Perdeu o sono de madrugada e leu as 125 páginas de Memórias do Cárcere. Embrulhado em um roupão azul andou pela casa, apenas ouvia-se o tilintar do relógio na parede, e o leve ruido das chinelas sob o chão de madeira. Fixou o olhar no telefone e sem pestanejar discou 222..., após alguns segundos de espera, ao invés de um aló, surpreendido ouve a poesia de Manuel de Novas, na voz de Cesária Évora :
Mãe qu'tê'me na ventre
Dá-me nhá direito di nasce
Pai quande 'm nasce
Dá-me nhá direito di vivê....
a música o fez chorar, veio-lhe a memória a lembrança de como "em nome da lei" ela havia se tornado importante em sua vida... lembrou-se então do telefonema numa tarde de sábado, em como os sentimentos nele se misturaram a alegria de poder ser novamente Pai, a tristeza por não saber o que aconteceria depois daquilo... ainda perdido em pensamentos encostou-se no banco alto a beira da janela, e soltou o gancho do telefone... caminhou novamente até o quarto ao lado, vestiu-se e minutos depois já ao volante e com os olhos ainda marejados de lagrimas - aquela imagem em nada lembrava o Juiz sábio e sereno respeitadissimo por sua classe e por toda cidade. Através das portas de vidro do 513 da António Barreto via-se um grande relógio que marcava 4.30, empurrou-as de leve, ignorou o guarda que adormecia sob o balcão da recepção e entrou, proximo ao elevador uma frase escrita na perede: "Cada homem julga bem as coisas que conhece", desviou o olhar e premiu o botão do elevador, com o olhar fixo no espelho, reflectia a respeito da lei, pensava em seu papel de Juiz enquanto atendedor das necessidades do povo, mas atender necessidades nem sempre é garantir a felicidade deste povo [...] apesar de tudo : "que prevaleça a lei" falou em voz alta com o elevador ja parado no 11º andar. Noventa e dois Kg divididos em quase dois metros de altura moveram-se a passos largos em direcção ao final do corredor...
2 comentários:
Só espero que não nos prives da continuidade deste belo conto. Lindo, muito lindo...
Olha! Já levo meses de esperança do teu livro. Tu mereces oferecer-nos um pelo menos
beijos
Minha pequena grande Mathaya, minha amiga, gosto encontrar-te nas lihas, mas muito mais nas entrelinhas, partilho da idéia de Olho Ateno, complete este "fragmento" e não nos prives por mais tempo do prazer do livro.
R.C
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